5 de jan. de 2017

Precedentes

Um colega e amigo deu-me recentemente um conselho de quem sabe por experiência própria:
- João, cuidado com os precedentes.

Foram palavras sábias. Ao reflectir sobre a profundidade do que me disse acabei por me sentir melhor. Afinal há alguma bondade na aparente frieza de quem, conscientemente, não cria precedentes.
Entendemos o mundo presente com base no conhecimento adquirido em acontecimentos precedentes. Consequentemente as relações humanas são moldadas e vão avançando sobre precedentes.
Se nunca telefonarmos à mãe quando chegamos de viagem, ela não vai ter essa expectativa; se nunca dermos o último pedaço de bolo ao marido, ele nunca vai sentir a falta dele; se o marido nunca avisar a que horas vai chegar, não vamos ficar à espera; se não dermos ao filho uma prenda por cada boa nota, ele não vai depender dessa recompensa; etc
Há atitudes intrinsecamente positivas que criam precedentes que não são necessariamente positivos.
Telefonar à mãe, mimar o marido, avisar a esposa, premiar o filho, visitar diariamente a avó, dar satisfação de tudo a um amigo, tolerar a simpatia intrometida dum vizinho, aceitar o ciúme do namorado, aceitar o domínio abusivo de um chefe, etc, são todas atitudes boas em si mesmas mas quando acontecem no momento mais frágil das relações humanas, que para mim é o momento do lançamento dos alicerces ou da construção da base, aquele momento em que cada um define o seu papel na relação, em que a relação de forças e de poder toma forma, nesse momento atitudes intrinsecamente boas podem repercurtir-se em relações de interdependência potencialmente más.
Mas não me julguem já. Eu acredito que todas estas atitudes são maravilhosas e aconselháveis em relações consolidadas, saudáveis, entre seres inteiros e independentes. E devem ser praticadas. O mimo, o carinho, a atenção, o respeito pela preocupação do outro são maravilhosas manifestações de amor que pratico sem medo e sem limites mas quando o outro está forte para as disfrutar sem ficar dependente delas. 
Quem me conhece sabe que o meu mantra é a liberdade. Para mim tudo o que possa tolher, minorar, prejudicar o exercício da liberdade de cada um, é negativo. Só concebo a autolimitação do exercício da liberdade. Nunca me sentirei presa se a minha liberdade se encolher na medida em que livremente decido encolhê-la e sem abdicar do direito de livremente a voltar a expandir. Claro que a vida é simples mas tem as suas complexidades e a questão da liberdade é muito complexa.
Mas, voltando aos precedentes, acabei então por pensar que na tal fase da construção das relações é importante não criar precedentes que tornem o outro dependente de nós, que lhes permitam sugar-nos a energia sem perceber. Exigir-nos amor não é amar-nos é sugar-nos, é parasitar-nos. O outro não o faz por maldade mas porque criou as suas expectativas com base nos nossos precedentes. E esta dinâmica é biunívoca: nós, os que agora estamos deste lado da lente, também criamos expectativas com base nos precedentes criados pelo outro.
Criar dependência é uma estranha forma de amar, revela um amor egoísta, que criando excessivo conforto no outro, o debilita e serve para garantir a nossa segurança e conforto também, porque controlar, ainda que mimando, no final sacia-nos a nós mais do que ao outro.
Agradeço ao meu colega e amigo ter despertado a minha reflexão sobre precedentes. Muitas vezes me sinto errada por ser muito atenta às atitudes limitadoras, ainda que intrinsecamente boas. Hoje aceito com mais serenidade que a minha forma "fria" de amar é libertar. Não concebo que alguém que me prenda, me limite, me enfraqueça, possa acreditar que me ama. Quem ama liberta e fortalece o outro, correndo o risco de não o controlar.

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