21 de out. de 2016

Morreu de amor!

- Māe, o que se passa com ela? -  perguntei eu ao chegar a casa depois de me ter cruzado com a vizinha da minha māe, suja, maltrapilha, triste, magra e de olhar vazio.
- Morreu de amor. - respondeu a minha māe sem hesitaçōes.
- Como assim? Que queres dizer se a senhora está viva, conta lá.
- A mulher que vez hoje é um farrapo humano. Nasceu surda, como o irmāo, no seio de uma família pobre, lá por meados dos anos 50, aqui na aldeia. O pai tinha mau feitio mas, coitado, a intençāo dele sempre foi protegê-la. Deixou-a ir estudar para o Porto e tudo! Por isso é que ela é muito prendada. Sabe ler e escrever, até se percebe mais ou menos o que ela diz. Sabe muito bem costurar, bordar e cozinhar. Lá no Porto conheceu um rapaz como ela que era de Viseu. Pelos vistos um rapaz bonito, de boas famílias e que tinha o próprio negócio, parece que era mecânico e tinha a própria oficina e uma vida montada na terra dos pais. Ela namorou com ele e o pai dela até a deixou lá ir algumas vezes, embora sempre a contra gosto e por pressāo da māe. O rapaz gostava mesmo dela e queria casar. Aí é que tudo se começou a complicar. O pai dela nunca concordou que ela fosse viver para Viseu. Coitado, tinha medo de assim nāo a poder proteger. Os pais dele, claro, também nāo permitiram que ele largasse a vida toda que tinha montada em Viseu para vir para cá. Com tanta teimosia o casamento estava fora de questāo apesar de eles gostarem um do outro. O rapaz, em desespero, um dia escreveu-lhe uma carta. Ninguém aqui sabe o que dizia porque o pai dela é que a tirou da caixa do correio e mal a leu queimo-a. A rapariga nem chegou a saber. A māe dizia-me que, mesmo nāo tendo lido, desconfiava que era o rapaz a tentar combinar um encontro para poderem fugir juntos e irem viver para Viseu. Ela nāo sabia mas só podia ser isso para o pai ter queimado a carta. E assim acabou tudo, o rapaz nunca mais cá veio e ela acabou por ficar solteira e triste, sempre agarrada aos pais. Lá foi vivendo. O irmāo casou, com uma rapariga que também é muda e que também saiu de ao pé dos pais para vir viver com ele!!! Os pais acabaram por envelhecer e morrer e ela ficou sózinha e a viver ali naquele casarāo. Ficou amarga e solitária mas sempre ia fazendo a vida dela e falando com os vizinhos. O rapaz acabou por casar com outra rapariga, teve dois filhos e viveu na Suiça uns tempos, mas o casamento dele acabou por nāo dar certo e acabou por se divorciar. Ela quando soube que ele se casou ficou arrasada.
Um dia, hà cerca de dez anos, vi chegar aquele homem, forte e bem apessoado, num carrāo com duas crianças atrás. Ele perguntou onde era a casa dela, que já nāo se lembrava bem. A casa com os anos e a tristeza que lá morava foi ficando com a pintura esbatida e ao portāo de madeira faltavam-lhe bocados, que caíram de podres. A casa sombria parecia abandonada e estava irreconhecível. Eu levei-o lá mas antes de o deixar entrar entrei eu para que ela nāo se assutasse. Acendi as luzes para a chamar mas ela nāo respondeu. Fui entrando com cuidado e acabei por dar com ela na casa de banho. Ela apanhou um grande susto mas acalmou ao ver que era eu. Disse-lhe que estava lá fora um senhor para falar com ela mas que eu nāo sabia quem era. Ela lá se compôs e quando deu de cara com ele percebi que o reconheceu. Ofereci a minha casa para eles poderem conversar sem estarem sozinhos mas ela, zangada mandou-me embora com um gesto de braços muito agressivo e visivelmente perturbada. Eu, sem saber ainda quem ele era, fiquei atenta e só ouvia os gritos ininteligíveis pois afinal era uma discussāo entre dois mudos. Ao fim de uma hora sem que ele saíssse de lá fui falar com os primos dela e avisar o que se passava. Fomos lá e pudemos presenciar ainda uma parte da discussāo e os gestos nervosos dela a bater o punho cerrado na palma da māo como quem dizia bem feito por o teu casamento ter acabado mal. Ela ficou ainda mais zangada com a nossa presença e agora mais enraivecida ainda mandou-nos a todos embora. Os primos disseram-me quem ele era e fiquei mais descansada. 
Uns minutos depois ele sai, com um ar desesperado, arranca e nunca mais voltou.
Nos dias que se seguiram ela foi ter comigo várias vezes como se quisesse dizer-me alguma coisa. Eu disse-lhe que falasse à vontade, que eu nāo a ía criticar. Ela contou-me que ele queria que ela fosse viver com ele, que tentassem refazer a vida deles e viver agora o amor que tinha sido interrompido pelo destino.
Mas a mulher que ele encontrou, apesar de ainda muito bela, como sempre foi, agora com pouco mais de 50 anos mas ainda viçosa e muito a tempo de ser feliz, era uma mulher amarga, entorpecida pelo sofrimento, pela solidāo e pelo desânimo. No momento daquele encontro todos os sentimentos reprimidos ao longo de anos, de revolta, ciúme e abandono, jorraram-lhe pela voz sem palavras, pelos olhos e pelos gestos. Tudo foi muito rápido e nem teve tempo de exorcisar o sofrimento e finalmente se entregar àquela nova oportunidade que a vida lhe dava. Agora chorava e confessava-me que estava arrependida mas que ele fora embora sem sequer deixar um contacto. Perguntei-lhe se queria que escrevesse o que ela sentia para mostrar aos primos, que talvez a ajudassem, mas ela habituada à incompreensāo, recusou. Já eu, ciente da tristeza daquele desfecho, voltei a falar com os primos, tentei convencê-los a interceder por ela, indo a Viseu à procura do rapaz, mas ninguém se mostrou disponível para a ajudar na busca da sua felicidade. Disseram-me mesmo que ela estava melhor assim, que já estava habituada a estar sozinha!! Fiquei muito desiludidada com tanta indiferença mas eu nāo podia fazer nada. Nāo tinha o direito de me meter mais. 
Depois daquele dia começou a mais triste decadência que eu já vi num ser humano. Ela ficou ainda mais enraivecida, isolou-se completamente, deixou de comer como deve de ser, deixou de limpar a casa ( um dia o sobrinho teve que a tirar de lá à força e mandar uma empresa de limpezas!) deixou de tomar banho e de cuidar da roupa. Quando passava deixava um cheiro nauseabundo. O cabelo ficou rapidamente branco, oleoso e enorme, nem se penteava. Passou a viver como um bicho na toca e tornou-se no farrapo humano que vês hoje. Adoeceu e envelheceu. Chorava muito e dizia constantemente que queria morrer, que se ía suicidar. Hoje, com pouco mais de 60 anos, come no centro de dia, onde passa os dias sem fazer nem dizer nada, de olhar errante e à noite regressa à ruína da sua casa e da sua vida. Apesar de estar viva, a partir daquele dia posso dizer que morreu de amor.

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