19 de jul. de 2023

Pedro e o Ding

Nesta história real o Pedro é uma pessoa real e o Ding é o seu cão, também real que, ao contrário do Lobo de outra história por todos conhecida, está sempre que o deixam junto de Pedro, alegre, fiel e guardião. Pedro e o seu cão são sem-abrigo e nós, os que por oposição, no fundo só nos distinguimos deles porque somos com-abrigo, tendemos a já não acreditar no que diz Pedro e já nem sequer queremos ouvir o que diz Pedro. Para alguns de nós é só mais uma cantilena de autocomiseração que estamos fartos de ouvir. Há no Pedro aquela "qualquer coisa" que faz reparar nele, que o distingue, que o isola como numa fotografia trabalhada em Photoshop, daquelas em o sujeito, o foco, é nítido enquanto a envolvente está desfocada, criando uma nebulosa quase artística que nos concentra no essencial. O Pedro é calmo, bem educado, não se mete em confusões, pede com humildade e quase com arrependimento. Para além de tudo isso é um homem bonito, ainda jovem (diz que tem 40 anos), cabelo grisalho com um corte interessante, ainda veste com bom gosto (desculpem o preconceito mas até melhor que muitos com-abrigo!), tem um corpo atraente e uns olhos castanhos doces. Apesar de já um pouco desdentado tem um sorriso franco e ele é uma pessoa franca que fala da sua vida sem rodeios e responde sem reservas ao que lhe perguntam por muito invasivo ou indiscreto que seja. Por vezes penso que se tivesse sorte ainda podia ser descoberto por alguém para ser modelo, como nos filmes... mas posso estar a exagerar. Claro que por trás desta caracterização romântica há uma história de vida conplicada, um mergulho na droga e a vida na rua há mais de uma década. Não sei mais porque não perguntei mais e como não podemos mudar o passado nem antecipar o futuro escrevo a história de Pedro porque há um apelo a fazer no presente. É fácil para um sem-abrigo, arrumador de carros, passar despercebido mesno quando é distinto como Pedro mas já não é tão fácil se ao seu lado tiver o Ding. O Ding é um cão rafeiro, castanho claro, ainda jovem mas já de porte médio e muito elegante, com um ar vivaço, prazenteiro, parece que tráz sempre um sorriso. Tem uma alegria de viver que às vezes exaspera Pedro. Ele corre, brinca, ladra, pula e desafia cães e pessoas para a brincadeira constante. O seu ar decidido mete medo a muitos e talvez com alguma razão pois se o ameaçarem ou ameaçarem o seu dono ele morde. Mas quem o pode criticar? Afinal leva muito a sério a fidelidade ao dono e neste sub-mundo dos sem-abrigo, nós, os com-abrigo, nem reparamos mas a vida não é fácil. Ding não conhece o conceito de património mas sabe bem que o seu território, aquele que está disposto a defender à dentada, é aquele onde o seu dono se movimenta. É difícil não gostar de Ding mas é impossível passar-lhe indiferente se estivermos a falar de Rosa. Ela ama animais, todos os animais, incondicionalmente e quase irresponsavelmente. Além disso ela é como Ding, vivaça, "rosna" um pouco e até pode "morder" mas tem um coração de ouro, capaz de amar inteiramente. Rosa não resistiu a Ding e começou a ajudar o Pedro com a comida do cão. Eu, que também gosto de animais, e que reparei na diferença de Pedro, comecei a ajudar também. Ajudar o Ding era uma forma de ajudar o Pedro. Um dia o Pedro chegou triste e ao mesmo tempo agitado. - O Ding foi atropelado. Deixei-o lá , com dores, disse-me, de forma contida mas sem conseguir disfarçar um desespero, uma dor quase física. Pediu ajuda ao Dr Matos, o psicólogo que apoia os sem-abrigo, um homem bom. Ele acalmou Pedro e começou a tratar de tudo para tratar o Ding. Várias pessoas se envolveram na ajuda a Ding: o Dr Matos, os Gatos Urbanos, a Rosa, a sobrinha da Rosa, a clínica Vet Condeixa e finalmente Barry. As noticias não pareciam boas. O Ding tinha uma fratura exposta numa pata e ainda não se sabia se tinha lesões internas. A primeira consulta pagou Rosa mas era preciso operar, tentar salvar a pata e fazer exames para saber então se havia lesões internas. Além disso, depois da operação em que lhe iam estabilizar a pata com parafusos era preciso medicar a horas e acompanhar. O excelente ortopedista veterinário que o operou concluiu que não havia mais lesões mas alguém tinha que o acolher. Ajudar pessoas e animais tem um lado emotivo que faz agir, sem demoras. Mas tudo na vida tem o outro lado da moeda, o lado prático: quem paga? Pedro obviamente não podia, o Dr Matos já cumpre a sua função e até para além dela, Rosa já tinha contribuido e os Gatos Urbanos negociaram os custos com a clínica - custo final 400€. Entretanto havia pela frente um longo período de recuperação durante o qual Ding não se poderia agitar porque a pata estava frágil e era preciso tomar medicação. É nesta fase que entra Barry, um inglês amante dos animais, com um longo historial de proteção dos animais em perigo e que vive em Miranda com Corvo em condições ótimas para acolher Ding. No final deste mês de medicação, idas ao veterinário e alimentação cuidada, era preciso começar a preparar o regresso à companhia do seu dono. Pedro apesar de muito grato pela ajida dada ao seu cão, não conseguia evitar momentos de grande tristeza em que desaparecia. Num desses períodos também ele foi atropelado e desta vez quem pagou os medicamentos fui eu. Uma das vezes em que Rosa se deslocou a Miranda para levar o Ding ao veterinário, aproveitou e deu boleia ao Pedro. A visita foi um caos. O Ding ficou tão radiante por ver o dono que forçou a pata e provocou uma infeção em alguns pontos. Daí resultou que Pedro não poderia visitá-lo mais até à recuperação total. Rosa começou a tentar encontrar um alojamento acessível onde Pedro, com uma pequena reforma de 300€, pudesse ter consigo o seu cão. O alojamento lá apareceu com a ajuda de um grupo de seres humanos bons de Assafarge. Agora era preciso arranjar trabalho ao Pedro o que não se mostrou fácil e enquanto o trabalho não aparecesse Pedro e Ding continuariam separados O pico emotivo amainou, todos voltaram às suas vidas, o Ding continuou no seu abrigo onde recuperou bem mas sem nunca mais voltar a ver o seu dono. Pedro recuperou também e voltou à sua vida de sem-abrigo e sem o seu cão. De vez em quando abordava-nos a tentar saber quando lhe devolveriam o Ding. Todos lhe davam respostas evasivas e pouco convincentes e a devolução foi sempre sendo protelada. Quando Pedro percebeu que não havia qualquer intenção de lhe devolverem o seu cão pediu-me ajuda. Eu tentei interceder para que Ding fosse entregue ao seu dono mas todos aqueles cuidadores tinham uma visão muito diferente da minha no que respeita à ajuda deste tipo. Para mim algo está errado numa decisão arbitrária de manter o cão separado do dono. Não compreendo que se acredite que um cão, especialmente com a personalidade do Ding, viva melhor preso num canil, ainda que o soltem para dar umas corridas e o alimentem bem, do que livre junto do seu dono, ainda que correndo alguns riscos. Não compreendo que se acredite que alguém não tem condições para ter um cão só porque é sem-abrigo. Nem vale a pena alongar-me muito sobre que tipo de conforto um cão realmente necessita. Não compreendo que alguém se sinta no direito de tirar um cão ao seu dono contra a sua vontade só porque ele é sem-abrigo, demosntra para mim um preconceito inaceitável e um paternalismo que me envergonha. Não compreendo o desrespeito por Pedro e pelo amor que tem pelo cão. Tristemente tive que comunicar ao Pedro que apesar dos meus esforços não lhe iam devolver o cão... Uma sombra de tristeza desceu sobre Pedro. Afastou-se em silêncio. A vida dera-lhe mais uma palmada, a vida estava a esmagá-lo só mais um bocadinho. Embora revoltante eu não queria meter-me neste conflito porque há muito na proteção dos animais que considero excessivo, com que não concordo e que não consigo combater. Lamento muito. Desculpa Pedro, desculpa Ding.

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