Por vezes as horas que passamos naquele ambiente fechado e doentio, sem ver sol, vai-nos acinzentando.
Ela chegou, reboludinha, com uma papel da EDP na mão. O sorriso trazia-o no olhar já que na boca idosa não haviam dentes, mas explicava-se bem!
- " Ó menina, venho aqui para vocês dizerem à EDP que eu ganho poucoxinho.
Sabe? Puseram lá o gás natural à minha porta e disseram que agora eu ia pagar tudo junto e que era muito melhor. Eu dantes gastava uma botija de 3 em 3 meses. Agora? Olhe, logo no 1º mês paguei 350€, depois mais 10€ não sei de quê, o mês passado foram 100€ e para o mês que vem já me disseram que são 40€.
Já viu? Eu assim não aguento! Sou sozinha, só tenho uma pensão pequenina, sou pobrezinha!"
Os nossos chefes não querem que extrapolemos as nossas funções (?!), que façamos mais do que é estritamente necessário. Porquê? Esta resposta daria um tratado pelo que tratarei dela noutra oportunidade...
A questão da ti Maria do Arlindo é outra, é a injustiça da sociedade em que vivemos e aceitamos viver. Aquela em que assistimos a empresas monopolistas (ainda que em ilusório mercado livre!) a agirem como verdadeiros predadores do cidadão, num jogo sem regras, sem lei, em que o cidadão é muitas vezes a presa frágil, sem qualquer hipótese de fuga ou defesa.
Não pude ficar indiferente. Telefonei para a EDP, para colegas, para amigos e fiz tudo o que podia (?) até conseguir apontar um caminho... Uma alma boa, o Simões (que todos conhecem!) ia ajudá-la. Mas antes disso deleitei-me com os fragmentos da sua história de vida, que ia soltando por entre perdigotos daquele sorriso desdentado e por isso mais aberto, mais franco!
A primeira confissão foi quase envergonhada, de menina idosa que fora apanhada na mentira!
Eu exclamei, inquisitiva: "Então você disse que era sozinha! Quem é este Basílio que aparece na sua declaração de IRS?"
Soltou uma pequena gargalhada e começou a contar:
- "Ó menina, isso é um homem que eu arranjei lá para casa! Uma carga de trabalhos!! Olha, fui enganada!
Estive viúva mais de 20 anos e há 3 anos arranjei este homem. Conheci-o nas excursões" - acrescentou ela baixinho, inclinando-se para a frente numa ternurenta atitude de clandestinidade marota!
- "Mas ele trata-a mal?" - perguntei eu preocupada.
- "Nããão! Ele é bom homem! Quando veio lá para casa estava bom ( pôs uma expressão malandra quando aplicou a palavra bom, certificando-se que eu entendia o subentendido... Eu sorri com um gesto de assentimento! ) mas, logo passado pouco tempo, ficou doente - disse, agora com uma expressão genuinamente triste! Sofre do coração, sofre do estômago e faz diálise de 2 em 2 dias. Está entrevado e eu é que trato dele e também não posso.
Queriam pô-lo no lar mas eu não o abandono agora, não acha? Olhe, ao menos faz-me companhia!"
Fiquei orgulhosa de ver tanto carácter! No meio da adversidade impunham-se os valores e sem perder o bom humor! Inspirador!
Disse-lhe para fim de conversa: "Claro que acho. Faz muito bem. Vá, vá lá ter com o Simões que já está a contar consigo e saúde, é o que lhe desejo!"
Lá foi ela, sorridente, já esquecida da maldita conta da luz.
Eu, com o ecrã ilumindado à minha frente, olho de novo para a declaração de IRS da D. Maria do Arlindo antes de chamar a próxima senha:
- rendimento anual: 3 900.00 €
- montante pago só à EDP em 3 meses: 500.00 €
Que selva!!!
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