O início hoje parece-lhe premonitório. Em alguns momentos volta a sentir aquele aperto na garganta, aquela falta de ar, sufocante, tal como no momento do nascimento em que o cordão que a ligava à vida tinha nos planos não a deixar viver. Não se sabe que poderes se confrontaram mas a primeira batalha foi ganha pela vida quando a arrancaram do ventre materno, aberto, e no derradeiro momento cortaram o cordão umbilical. A mãe corajosa seria sempre o pé mais forte da mesa de tripé em que a vida de J se viria a transformar.
J cresceria sempre apoiada num tripé de relações emocionais muito fortes. Três pessoas seriam sempre o seu suporte - a mãe, o pai e, mais tarde quando perdeu o pai, o marido
Depois da alegria do nascimento de J, apesar da dor e da preocupação, a vida correu feliz. Festas, caçadas, pic-nics, praia, bailes e jantaradas e muitos amigos. Cada momento feliz era gravado em fotografias amadoras que imobilizavam a alegria e prometiam não a deixar morrer. Mas hoje quando J abre a caixa velha de sapatos ou o envelope amarelecido pelo tempo onde a mãe guarda as fotos tiradas quando tinha uma vida, logo a tristeza dos olhos negros invade a imagem e sobrepõem-se sempre à alegria dos momentos que se quiseram preservar.
São raras as vezes em que J concede olhar para trás e suportar a saudade. Umas dezenas, poucas, de fotos resumem quase uma década de vida em África. Depois destas fotos veio a guerra , a independência de Angola, a grande viagem de barco (ou foi de avião?!) e a Metrópole. Estava consumada uma viragem na vida feliz e um novo começo. Com a mudança mais tristeza.
Muito se tem dito e escrito sobre os retornados. Que foi bom terem vindo, que trouxeram uma nova vida a Portugal, que desenvolveram, mas também que vieram ocupar o lugar que pertencia aos de cá, que só roubaram, que tiveram que os sustentar, que foram uns privilegiados, enfim, uma mescla de sentimentos que afinal davam sinal de um mal-estar latente, e por vezes patente, contra os retornados.
J tinha olhos negros, cabelo negro, pele quase negra e uma alma negra, africana, livre e aberta. Era apenas uma criança, de riso sincero e olhos tristes.
Haveria apenas duas constantes na vida de J: o tripé dos sentimentos e a mudança, o retorno para um pais onde nunca tinha estado.
Depois do choque da primeira mudança veio alguma alegria. Inocentemente encantava-se com a casa humilde da avó, que bom ter uma avó!, com o tapete de mato à entrada da porta da cozinha que a avó trouxera de manhã à cabeça embrulhado num panal e onde agora as galinhas depenicavam num cacarejar engraçado, as cabras no "sarrado", as laranjas ali à mão e as tangerinas doces ao alcance do seu braço pequenino e rechunchudo, os novos amigos, a nova escola. Esta escola não se comparava com o colégio de Luanda mas as salas cheiravam bem - aquele cheiro a madeira, cera e giz ficaria para sempre na sua memória de infância. Agora para ir para a escola já não atravessava uma rua movimentada, sempre vigiada pelo olhar atento e libertador do pai e apavorado da mãe, que da varanda torciam para que não se esquecesse de parar, olhar para um lado e para o outro e atravessar sem ser atropelada. Agora percorria livre e sem vigilância uns bons 3 kms de campos floridos, cheios de azedas-bravas que comia alegremente enquanto fazia caretas feias provocadas pelo amargo da seiva fresca daquelas flores amarelas que lhe iluminavam o rosto onde os olhos negros continuavam tristes.
Agora era portuguesa! Tinha amigos brancos! No entanto, a cada momento a sua tez escura, o seu sotaque persistente, as palavras esquisitas que ainda usava, a sagacidade resultante de uma breve passagem por um sistema de ensino mais moderno, denunciavam a verdade: ahhh! És retornada!?!?
Com o passar dos anos o rótulo acabou por esmorecer e só de vezes a tempos alguém pressentia que havia algo de diferente naquela personalidade, naquela forma de ver a vida e acolher os outros, e perguntava quase em jeito de afirmação: é retornada, não é? E voltava tudo, o aperto na garganta, a falta de ar, a viagem, a mudança e o choque. Sim, nasci em África, respondia orgulhosa.
A vida recompôs-se para J. Os pais eram lutadores, a família era harmoniosa. O pai tinha um emprego que lhe fora garantido por ser retornado. Este país que não nos queria acolher sentia-se culpado por termos perdido tudo e de certa forma tentou compensar-nos
A mãe, eterna dona de casa, era o pilar, o equilíbrio; excelente gestora da economia doméstica revelou sempre poderes mágicos de multiplicação dos recursos. O pai, um empreendedor nato, encantava todos os que com ele conviviam. Sensível e amigo, tinha o poder de reunir consensos, amigos, familiares e de ensinar a amar, a ser sensível num mundo retrógrado, de machos, onde um homem não chora. Ele chorava. Era um pai extraordinário e um ser humano encantador.
Eu cresci, ele prosperou, a minha mãe foi novamente feliz.
O caminho não foi fácil e houveram muitos episódios de tristeza e muitos outros de alegria.
J ganhou uma família grande: muitos tios, muitos primos, Natal em família, Páscoa em família, aniversários em família, tudo em família - perfeito!
Desta nova vida fizeram-se mais fotografias mas os negros continuaram a encher as fotos de tristeza.
J cresceu e tornou-se uma adolescente. Boa aluna, alguns amigos, campo e cidade, viagens, animais. Tinha tudo mas dentro dela havia sempre uma tristeza inexplicável que brotava pelos olhos negros.
Havia nela um espírito livre, uma sensação de savana que fora apertada, amarrotada e enfiada à força num espaço pequeno, sem ar. A sensação de estar a sufocar vinha muitas vezes. A sua integração nunca fora total, era sempre estranha, inadaptada, incompreendida. Acompanhou-a sempre a sensação de ser um bicho exótico, que se visita num jardim zoológico mas que não se leva para casa.
Nestes tempos incertos a natureza agiu e fez explodir de paixão o coração jovem de J. Apaixonou-se por P que logo se tornou na vida de J, no ar que ela respirava e que não permitia que o cordão umbilical a voltasse a sufocar. O seu espírito livre e um pouco selvagem revelou-se quando se transformou em Leoa para lutar pelo seu amor, pelo terceiro pilar.
Para os outros P era a pessoa errada na hora errada. Parecia que o destino de J estava linearmente traçado: um curso superior, uma carreira de sucesso e uma vida sem surpresas. Mas ninguém conhecia verdadeiramente J, todos se esqueceram que o seu espírito era livre, que a sua alma era negra, africana e aberta como uma savana, que as barreiras lhe aguçavam o instinto selvagem e que o seu destino era tudo menos linear.
Mais uma vez a tristeza marcou pontos.
J vivia a alegria estonteante da paixão por P mas sofria a tristeza da incompreensão do pai. Da batalha só resultaram feridos. Como em todas as batalhas não houve vencedores.
Na alegria da paixão, da loucura de um novo amor, J descorou os seus outros pilares emocionais. Tomava-os como certos, incontestáveis. Mas a tristeza haveria de voltar em força.
De repente, o pai, o seu pilar mais forte, morreu.
Silêncio
Escuridão
Vazio
Desespero
Sem ela saber uma parte de J morrera com ele e a mesa ficou desequilibrada, para sempre. Golpe brutal e insuportável.
Perante a morte a tristeza ganha força. Tudo se tornou triste
O tempo não cura, esmorece, ameniza. A felicidade volta. Mas fica um medo de voltar a sentir tamanha dor. Mas com o tempo J também aprendeu que a dor virá e portanto há que disfrutar da felicidade com a maior intensidade possivel enquanto ela não vem.
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